Neste artigo vamos esclarecer algumas dúvidas sobre a restituição de valores indevidamente recebidos pelo servidor público. Saiba mais!
Com fulcro em motivações diversas, o repasse de verbas indevidas a servidores públicos é bastante comum na prática administrativa e enseja, em regra, a obrigação de devolução ao erário, isto é, a devolução do valor recebido aos cofres públicos. Dessa forma, a restituição se impõe para evitar lesão à ordem pública, intimamente vinculada aos interesses coletivos do Estado.
Nesse sentido, é natural o surgimento de um conflito de interesses entre a Administração e seus servidores. Pautada pelo interesse público, a Administração norteia a própria conduta dirigida à proteção do patrimônio nacional. Já o servidor, na posição de mero trabalhador assalariado, defende o próprio interesse privado, como não haveria de se esperar de forma diversa.
Em muitos casos, como na hipótese de erro fortuito da Administração, a situação pode ser de simples resolução no próprio âmbito interno. Isso porque, em geral, o erro costuma ser grosseiro e de fácil constatação. Nessas circunstâncias, o procedimento administrativo levado à cabo é o desconto sucessivo em folha de pagamento do servidor, até que alcançado o montante indevidamente repassado.
O procedimento adotado pela Administração para a restituição então abordada é estabelecido pelo disposto na Lei Federal n° 8.112, de 1990 [1]. Tendo em vista que atos administrativos são vinculados, deve a lei estabelecer as condições para a realização destes e, nesse sentido, a previsão normativa contida no Art. 46 expressa as hipóteses de devolução imperativas ao servidor público federal, nos seguintes termos:
Art. 46. As reposições e indenizações ao erário, atualizadas até 30 de junho de 1994, serão previamente comunicadas ao servidor ativo, aposentado ou ao pensionista, para pagamento, no prazo máximo de trinta dias, podendo ser parceladas, a pedido do interessado.
§1º O valor de cada parcela não poderá ser inferior ao correspondente a dez por cento da remuneração, provento ou pensão.
§ 2º Quando o pagamento indevido houver ocorrido no mês anterior ao do processamento da folha, a reposição será feita imediatamente, em uma única parcela.
§3º Na hipótese de valores recebidos em decorrência de cumprimento a decisão liminar, a tutela antecipada ou a sentença que venha a ser revogada ou rescindida, serão eles atualizados até a data da reposição.
Pode se inferir, deste modo, que o dispositivo transcrito preconiza como um dever do servidor público a restituição do montante recebido de forma indevida. Frente ao prejuízo causado ao erário, a falta de restituição configurar-se-ia enquanto um atentado contra o princípio da moralidade indubitável da Administração.
Oportuno destacar que a obrigação que então se traduz imperativa denota a natureza da função pública e a finalidade do Estado no sentido de impedir que seus agentes deixem de cumprir os deveres que a lei lhes impõe. Ademais, por meio da medida busca-se o efetivo exercício dos poderes conferidos à Administração Pública, cuja utilização voltada em prol da coletividade não pode ser objeto de renúncia ou descumprimento pelo administrador, de modo que ensejaria ofensa ao bem comum, objetivo maior da atividade administrativa. [2]
Nessa via, tem-se que, acaso não se promovesse a devolução dos valores recebidos a maior pelo servidor público, certamente se estaria diante de um flagrante de enriquecimento sem causa. Deve-se ter em vista, porém, que o ordenamento jurídico vigente repugna todos os tipos de enriquecimento indevido.
Noutro sentido, nos casos em que estão envolvidas profundas controvérsias quanto à necessidade – ou não – de reposição ao erário, a solução deve, invariavelmente, ser dirimida pelo poder judiciário. Vê-se, ainda, que são estabelecidas em caráter jurisprudencial e doutrinário, hipóteses em que não está o servidor compelido à restituição ao erário.
Acerca do tema, impende trazer a lume o comentário do Prof. Paulo de Matos Ferreira Diniz [3]:
“(…) Quando ocorrido o pagamento indevido no mês anterior ao do processamento da folha, a reposição será feita imediatamente em uma única parcela. (…) Pagamento de vencimentos ou remuneração feito a servidor e, por extensão, proventos, pois este decorre daquele, devido à revisão na interpretação da lei ou mudança de critérios da Administração, quando recebido de boa-fé, tem caráter alimentar e não está sujeito à repetição do indébito e produzirá efeitos após a revisão do ato concessório.”
Infere-se da lição doutrinária que admitida é a interpretação no sentido de que apenas não será cabível a restituição de valores ao erário se forem estes recebidos de boa-fé e se presentes os requisitos estabelecidos, quais sejam: a errônea interpretação da lei ou a mudança de orientação jurídica pela Administração Pública.
O exposto é consoante ao conteúdo sumulado pela Advocacia-Geral da União a respeito da temática[4]:
“Não estão sujeitos à repetição os valores recebidos de boa-fé pelo servidor público, em decorrência de errônea ou inadequada interpretação da lei por parte da Administração Pública.”
Oportuno destacar, ainda, que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou entendimento no sentido de que para que não seja devida a devolução de valores indevidamente pagos pela Administração, deve ser observado, no caso concreto, o recebimento de boa-fé pelo servidor e a natureza de caráter alimentar das vantagens.
Uma vez que os valores recebidos ostentam natureza de garantir o sustento do servidor e de sua família, não há como exigir deste que corra o risco de passar necessidades básicas para a correção de um erro ao qual não deu causa.
Nesse mesmo sentido seguem as interpretações jurisprudenciais quanto ao assunto em debate, conforme se tem:
“PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. RECEBIMENTO INDEVIDO. BOA-FÉ. RESTITUIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. RESTITUIÇÃO DAS PARCELAS DESCONTADAS. DESCABIMENTO. 1. É pacífico na jurisprudência o entendimento de que, constatada a boa-fé do servidor, não devem ser devolvidos ao erário os valores pagos a maior pela Administração Pública, em razão de equívoco na interpretação ou má aplicação da lei. (…). 4. Apelação improvida e remessa oficial parcialmente provida.” [TRF-5. PROCESSO: 00149864420114058100, AC547376/CE, RELATOR: DESEMBARGADOR FEDERAL PAULO ROBERTO DE OLIVEIRA LIMA, Segunda Turma, JULGAMENTO: 10/12/2013, PUBLICAÇÃO: DJE 19/12/2013 – Página 229].
“ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. VALORES DIVERGENTES PAGOS POR ERRO DA ADMINISTRAÇÃO. REPOSIÇÃO AO ERÁRIO. INEXIGIBILIDADE. BOA-FÉ. VERBA ALIMENTAR. 1. Remessa oficial e apelação em face de sentença que concedeu a segurança, para determinar “a abstenção da impetrada de efetuar qualquer desconto nos proventos do impetrante a título de Provento Básico, anuênio e GDACE, mencionados na notificação nº. 009/CESTPB/SRH”. 2. A jurisprudência pátria majoritária tem se consolidado no sentido de considerar inexigível a devolução ao erário de valores recebidos de boa-fé por servidores públicos, que não podem ser penalizados por erro da Administração na realização do pagamento, para o qual não concorreu. Precedentes do e. STJ e desta Corte Regional. 3. Verba de caráter alimentar que, por prerrogativa constitucional, goza da chamada irrepetibilidade. 4. Remessa oficial e apelação improvidas.” [TRF-5. PROCESSO: 00087312720124058200, APELREEX29469/PB, RELATOR: DESEMBARGADOR FEDERAL MARCELO NAVARRO, Terceira Turma, JULGAMENTO: 05/12/2013, PUBLICAÇÃO: DJE 09/12/2013 – Página 114].
Afora o entendimento das hipóteses cingidas, vislumbram-se interpretações do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), no sentido de que a restituição de valores recebidos de boa-fé pelo servidor também não é exigível quando o pagamento for motivado por falha ou erro operacional por parte da Administração. Contudo, é oportuno destacar que a temática não é pacífica nos entendimentos dos tribunais, de modo que ainda é ponto de discussão central em demandas judiciais.
Urge-se destacar, no entanto, que a simples alegação de que as parcelas foram recebidas de boa-fé não elide a obrigatoriedade de ressarcimento ao erário. Portanto, analisados os casos de dispensa de restituição de cobrança indevida, infere-se que constituem estes uma exceção à regra da devolução.
Diante de todo o exposto, conclui-se que é devida a devolução ao erário por meio de desconto em folha de pagamento do servidor pela Administração Pública, desde que observados os limites legalmente estabelecidos em dispositivo próprio, uma vez que é finalidade última da atividade administrativa a defesa do interesse comum para o qual, portanto, não pode ser motivado prejuízo ao erário. Não obstante, não podem ser ignoradas as circunstancias em que a dispensa do servidor à devolução da quantia é cabível, quais sejam as hipóteses de erro ou má aplicação da lei, cumulados à recepção de boa-fé e natureza alimentar das vantagens recebidas.
ALANA PÊGAS DUARTE CYRNE
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[1] BRASIL. LEI Nº 8.112, DE 11 DE DEZEMBRO DE 1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8112cons.htm
[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33ª Edição. Atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. Malheiros Editores. São Paulo, 2007.
[3] DINIZ, Paulo de Matos Ferreira. Lei nº 8.112/90: Comentada, Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União. Brasília:Editora Brasília Jurídica, 2004.
[4] BRASIL. Advocacia-Geral da União. Súmula nº 34, de 16 de setembro de 2008. Disponível em: < http://www.agu.gov.br/sistemas/site/PaginasInternas/Normas Internas/AtoDetalhado.aspx?idAto=29994&ID_SITE=>. Acesso em 20 jan. 2011.