Em tempos de justificável descrença na Administração Pública em geral avultam em relevância princípios, fontes secundárias do Direito, que asseguram aos cidadãos garantias de que o Estado, independentemente da vontade singular de seus agentes, deve observar comportamento probo fazendo-se, por consequência, confiável.
Neste contexto destacam-se os princípios da proteção à confiança e da boa-fé objetiva. A proteção à confiança emerge da necessidade de que as legítimas expectativas do cidadão não sejam frustradas pelo Estado.
O princípio da confiança baseia-se na expectativa de que as outras pessoas ajam de um modo já esperado, ou seja, normal. Consiste, portanto, na realização da conduta de uma determinada forma na confiança de que o comportamento do outro agente se dará conforme o que acontece normalmente.
O princípio da boa-fé é um dos princípios fundamentais do direito privado brasileiro e sua função precípua é estabelecer um padrão ético de conduta para as partes nas mais diversas relações obrigacionais.
Confunde-se, e ao mesmo tempo dissocia-se, com o princípio da boa-fé objetiva do Estado, na medida em que este impõe à Administração Pública um dever de lealdade em seu agir, de modo que não frustre as expectativas que deposita aos administrados.
A propósito já afirmou o brilhante José Guilherme Giacomuzzi: “O Estado tem o dever de agir conforme a boa-fé e a moralidade para fazer-se confiável”1. Complementado por Veríssimo Tarrago da Silva: “Assim, tem-se que, enquanto a proteção à confiança surge como garantia do indivíduo frente ao Estado como derivação direta do princípio da segurança jurídica e indireta da idéia de Estado de Direito, a boa-fé projetada aos atos e condutas da administração pública é um dever estatal, imposto pela constituição federal”2.
No mesmo passo, Couto e Silva citado por Silva, a respeito dos efeitos inerentes ao Princípio da Proteção à Confiança, informa que esta o Estado jungido a “limitações na liberdade de alterar sua conduta e de modificar atos que produziram vantagens para os destinatários, mesmo quando ilegais, atribuindo-se conseqüências patrimoniais por essas alterações, sempre em virtude da crença gerada”3 nos indivíduos de que aqueles atos seriam mantidos.
É o que ocorre, à guisa de ilustração, quando o poder público municipal após analisar os projetos de determinada edificação e conceder o competente alvará de construção nega o atestado de habitabilidade (HABITE-SE) à mesma obra, construída nos exatos moldes do plano inicial, ao argumento de que esta não respeitaria a legislação de regência.
Ora, é inegável que a aprovação do projeto pelos órgãos competentes guarda consigo o condão de gerar expectativas que jamais poderão ser frustradas, sob pena de irreparável afronta aos Princípios da Boa-fé e da Proteção à Confiança, ramificação do Princípio da Segurança Jurídica, essência da estabilidade, previsibilidade e fé que devem decorrer do Direito.
Nesse sentido têm se manifestado inúmeros tribunais nacionais, cujas decisões e respectivos fundamentos, estão bem representadas pelo seguinte paradigma:
ATO ADMINISTRATIVO – CONSTRUÇÃO – ALVARÁ DE LICENÇA – EXPEDIÇÃO POR ERRO DA ADMINISTRAÇÃO – INFRINGÊNCIA ÀS REGRAS EDILÍCIAS – OBRA EM FASE DE ACABAMENTO – ADMINISTRADO DE BOA-FÉ – ANULAÇÃO – INADMISSIBILIDADE – PREVALÊNCIA DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA SOBRE O DA LEGALIDADE – MANDADO DE SEGURANÇA CONCEDIDO – REEXAME NECESSÁRIO IMPROVIDO – Quando o erro é exclusivo da administração, na concessão de alvará de licença para construção, a anulação ou revogação desse ato administrativo só é possível se não fez surgir situação consumada e direitos adquiridos para o interessado, que sempre esteve de boa-fé, com prevalência do princípio da segurança jurídica sobre o da legalidade. Ora, se a construção decorre de inexatidão imputável exclusivamente à administração, criou uma situação de fato revestida de aparência de legalidade, gerando convicção de legitimidade para todos, razão porque não há admitir-se a anulação do ato quando a obra já se encontra em fase final de acabamento, havendo, nesta hipótese, de se respeitar a estabilidade nas relações dos administrados com a administração, com prestigiamento do princípio da boa-fé. (TJPR – RN 0071385-3 – (14509) – 4ª C.Cív. – Rel. Des. Conv. Airvaldo Stela Alves – DJPR 22.02.1999). [destacado].
Sobreleva frisar que a renitência da administração pública na concessão do habite-se pode, inclusive, nos termos da fundamentação já exposta, ensejar direito à reparação civil (indenização) aos cidadãos, acaso lhes sobrevenha prejuízo moral – ou à imagem, acaso pessoa jurídica seja – e material. A respeito posicionou-se o tribunal mineiro em recente decisão:
REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS. DESPESAS COM ALTERAÇÕES EXIGIDAS PARA CONCESSÃO DE HABITE-SE. CONSTRUÇÃO DEVIDAMENTE AUTORIZADA POR ALVARÁ DE CONSTRUÇÃO. CORRESPONDÊNCIA DA OBRA EXECUTADA COM O PROJETO APROVADO. FALHA DA ADMINISTRAÇÃO NA APROVAÇÃO DO PROJETO. DEVER DE REPARAR. – A expedição do alvará de construção é ato vinculado da Administração, que depende da análise do projeto apresentado à luz das exigências legais que regulamentam o direito urbanístico, devendo ser deferido sempre que o projeto atenda as exigências legais. – Aprovado o projeto, e concedido o alvará de construção, o construtor obtém a certeza de que perante a fiscalização foram todas as exigências da lei vigente a época da aprovação atendidas, com a prerrogativa da presunção de legitimidade e definitividade da obra, motivo pelo qual despesas que não estavam previstas no projeto, mesmo que destinadas a atendimento de normas de segurança, devem ser ressarcidas ao construtor pela Administração Municipal, pois decorreram de falha no serviço de fiscalização desta Administração, que poderia já ter sido incluído as adaptações necessárias para a segurança da obra na ocasião de expedição do alvará de construção. (TJMG – Apelação Cível 1.0024.10.166186-6/001, Relator(a): Des.(a) Duarte de Paula , 4ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 10/04/2014, publicação da súmula em 15/04/2014). [destacado].
Logo, em que pesem as incontáveis manifestações contraditórias emanadas diariamente dos poderes públicos federal, estadual e municipal, em hipóteses tais, basta recorrermos aos princípios da boa-fé objetiva e da proteção à confiança para chegarmos à inarredável conclusão de que ainda há esperança.
BRUNO PENA DO CARMO
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1 – GIACOMUZZI, José Guilherme. A Moralidade Administrativa e a Boa-Fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa, São Paulo: Malheiros, 2002. P. 427.
2 – SILVA, Veríssimo Tarrago da. O princípio da proteção à confiança no âmbito do direito tributário. Disponível em <http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2009_2/verissimo_silva.pdf>. acesso em 13 de set. 2009.
3 – COUTO E SILVA cit in SILVA, Op cit in nº 2.