A usucapião tem se mostrado um dos institutos jurídicos mais debatidos e questionados do direito civil moderno, especialmente por permitir a aquisição de propriedade de modo originário, ou seja, independentemente da vontade do anterior dono.
Assunto ainda mais complexo, polêmico e pouco explorado é a possibilidade jurídica de se usucapir bem pertencente à espólio (conjunto de bens deixados por quem faleceu) do qual se é herdeiro. Antes de adentrarmos ao estudo deste espinhoso tema, contudo, é necessário traçar os delineamentos básicos da usucapião, discorrendo sobre os requisitos comuns à todas as modalidades deste importe instituto.
Na escorreita lição de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, tem-se uma definição da usucapião como: “o modo originário de aquisição da propriedade, mediante o exercício da posse pacífica e contínua, durante certo período de tempo previsto em lei.” (STOLZE e GAGLIANO, 2016, p.1003)[1].
Destas breves linhas é possível extrair os requisitos basilares para que se possa usucapir determinado bem, quais sejam: a posse e o transcurso do tempo.
Deve-se frisar que a posse deve ser qualificada pelo que a doutrina convencionou chamar de animus domini, ou seja, ânimo de proprietário. Assim, aquele que pretende usucapir tem que agir para com o bem usucapiendo como se dele fosse proprietário, arcando com os tributos a ele referentes e protegendo-o de quem injustamente o reclame.
A posse deve ser, também, pacífica e contínua. Para que a posse seja pacífica é necessário que ninguém tenha reclamado a propriedade do bem usucapiendo até a abertura do processo judicial ou extrajudicial de usucapião.
Contínua, por sua vez, é a posse sem intervalos, sem interrupção.[2] Cabe ressaltar, porém, que é possível, através do instituto jurídico da acessio possessionis, somar as posses dos anteriores possuidores à do que pretende usucapir, por expressão disposição legal, inserta no Código Civil em seu artigo 1.243.
É importante ressaltar que a legislação pátria não trata especificamente da usucapião por herdeiro. Nada obstante, a jurisprudência entende ser possível a aquisição originária da propriedade pelo herdeiro, desde que ele consiga demonstrar que exerce a posse com exclusividade, pelo tempo estipulado em lei (de acordo com a modalidade de usucapião) e, mormente, agir como se dono fosse.
Deste modo, o herdeiro usucapiente deve demonstrar, de forma evidente, a existência de animus domini sobre a parte comum da coisa usucapienda. Assim como, a posse mansa e pacífica no imóvel, sendo que o exercício da posse mediante consentimento dos coproprietários, por simples tolerância, não representa a posse exclusiva sem resistência.
Outrossim, o egrégio Superior Tribunal de Justiça sobre o tema já decidiu pela possibilidade de usucapião por herdeiro condômino:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 282/STF. HERDEIRA. IMÓVEL OBJETO DE HERANÇA. POSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO POR CONDÔMINO SE HOUVER POSSE EXCLUSIVA.
1. Ação ajuizada 16/12/2011. Recurso especial concluso ao gabinete em 26/08/2016. Julgamento: CPC/73.
2. O propósito recursal é definir acerca da possibilidade de usucapião de imóvel objeto de herança, ocupado exclusivamente por um dos herdeiros.
3. A ausência de decisão acerca dos dispositivos legais indicados como violados impede o conhecimento do recurso especial.
4. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários (art. 1.784 do CC/02).
5. A partir dessa transmissão, cria-se um condomínio pro indiviso sobre o acervo hereditário, regendo-se o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, pelas normas relativas ao condomínio, como mesmo disposto no art. 1.791, parágrafo único, do CC/02.
6. O condômino tem legitimidade para usucapir em nome próprio, desde que exerça a posse por si mesmo, ou seja, desde que comprovados os requisitos legais atinentes à usucapião, bem como tenha sido exercida posse exclusiva com efetivo animus domini pelo prazo determinado em lei, sem qualquer oposição dos demais proprietários.
7. Sob essa ótica, tem-se, assim, que é possível à recorrente pleitear a declaração da prescrição aquisitiva em desfavor de seu irmão – o outro herdeiro/condômino -, desde que, obviamente, observados os requisitos para a configuração da usucapião extraordinária, previstos no art. 1.238 do CC/02, quais sejam, lapso temporal de 15 (quinze) anos cumulado com a posse exclusiva, ininterrupta e sem oposição do bem.
8. A presente ação de usucapião ajuizada pela recorrente não deveria ter sido extinta, sem resolução do mérito, devendo os autos retornar à origem a fim de que a esta seja conferida a necessária dilação probatória para a comprovação da exclusividade de sua posse, bem como dos demais requisitos da usucapião extraordinária.
9. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, provido.
AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. IMÓVEL EM CONDOMÍNIO. POSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO POR CONDÔMINO SE HOUVER POSSE EXCLUSIVA. 1. O condômino tem legitimidade para usucapir em nome próprio, desde que exerça a posse exclusiva com animus domini e sejam atendidos os requisitos legais do usucapião. 2. Agravo regimental provido. (AgRg no AREsp 22.114/GO, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 05/11/2013, DJe 11/11/2013) [destacado]
Desta forma, conclui-se pela possibilidade de usucapião por herdeiro de bem pertencente ao espólio, sendo necessário para tanto que estejam presentes os requisitos da usucapião pretendida, especialmente o tempo e a posse manda e pacífica, com exclusividade, qualificada pelo animus domini.
RICARDO AUGUSTO DELVAUX DA SILVA
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¹ STOLZE, Pablo. FILHO, Rodolfo Pamplona. Manual de Direito Civil. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
² TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 5. ed. São Paulo: Método. 2015. p. 729.
³ PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil, volume IV, Editora Forense, Rio de Janeiro, 12ª ed., 1997, p. 114.