O Código Civil reconhece a possibilidade de existência de parentesco socioafetivo, resultante de consanguinidade ou de outra origem civil. Saiba mais.
O advento da Constituição Federal de 1988, como é cediço, provocou profunda mutação na estrutura social e familiar brasileira, lançando nova base jurídica consagradora de princípios fundamentais como a igualdade e a dignidade da pessoa humana.
Tal como ocorrido com diversos outros ramos do direito, os novos pórticos constitucionais foram incorporados ao Direito de Família e, a partir deles, foi transformado o próprio conceito de família, que passa a ter em seu âmago a constituição de um núcleo fundado na igualdade e, em especial, no afeto.
Em compasso com as conquistas e evoluções sociais, o ordenamento e a jurisprudência pátria atualmente consagram, de forma pacífica, o reconhecimento e a proteção do parentesco de origem diversa da sanguínea, como o parentesco socioafetivo, decorrente dos laços de afeto entre pai e filho.
Quanto ao tema, o artigo 1.593[1] do Código Civil reconhece a possibilidade de existência de parentesco, que resulta de consanguinidade ou de outra origem civil, dando margem ao reconhecimento do vínculo do parentesco socioafetivo.
Em novembro de 2017, nova e importante evolução foi implementada no Direito de Família: a consolidação pelo Conselho Nacional de Justiça da possibilidade de reconhecimento da filiação socioafetiva de forma extrajudicial, perante os Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais de qualquer unidade federativa do país.
Afinado com o princípio do melhor interesse da criança e com o propósito de desjudicialiazação dos processos nos quais não há conflito, foi editado pelo CNJ o provimento nº. 63, de 14/11/2017, disciplinando a matéria até então reservada ao judiciário ou regulamentada apenas em alguns estados, conforme atos normativos próprios e de aplicação restrita.
A partir da publicação do provimento citado, passou-se a admitir, em todo o país, o reconhecimento da maternidade e da paternidade fundada no afeto recíproco através de procedimento mais célere e inteiramente extrajudicial, observados os requisitos elencados no arts. 10, 11 e 12, dos quais se destacam os seguintes:
Este último requisito, denominado de posse do estado de filho, exige especial atenção do tabelião competente acerca dos seus elementos caracterizadores, em número de 03 (três), conforme doutrina de Maria Berenice Dias[2]:
Existindo dúvida sobre a configuração desse estado de posse de filho, o registrador deve fundamentar a recusa, não registrar o ato e encaminhar o pedido ao juiz competente, nos termos do art. 12 do Provimento nº 63/2017.
Em agosto de 2019 a Corregedoria do CNJ editou o Provimento nº 83/2019, modificando parcialmente o procedimento extrajudicial em questão. Dentre as alterações implementadas, destacam-se a restrição do procedimento extrajudicial para apenas maiores de 12 anos e a exigência de postura ativa do registrador, consistente na verificação, a partir de elementos concretos (art. 10-A, §1º), da efetiva existência do vínculo de paternidade ou maternidade socioafetiva, antes apenas declarada pelos interessados.
Atendidos os requisitos necessários, o registrador deve encaminhar o expediente ao Ministério Público para parecer. Caso o parecer seja favorável, poderá proceder ao registro da filiação sociafetiva. Contudo, na hipótese de parecer desfavorável, o registrador não procederá ao registro e arquivará o expediente.
Havendo dúvidas sobre a configuração do estado de posse de filho ou impugnação dos requerentes quanto ao parecer desfavorável do Ministério Público, o registrador deverá encaminhar o pedido ao juiz competente.
Cumpridas todas as formalidades e observados todos os requisitos previstos na norma, inclusive parecer favorável do órgão ministerial, será procedida a averbação do reconhecimento filiação socioafetiva no assento de nascimento do filho, ao qual serão assegurados todos os efeitos próprios do reconhecimento, inclusive sucessórios e patrimoniais.
Importante observar que, por expressa previsão contida na norma, o reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva não exclui a filiação biológica, de modo que no assento de nascimento de determinada pessoa poderão constar, por exemplo, dois pais e uma mãe. Aliás, a coexistência da filiação biológica com a socioafetiva de há muito já é agasalhada pela jurisprudência nacional e possui, ainda, menção expressa nas considerações preambulares do Provimento nº. 63/2017.
Em linhas gerais, são essas as principais informações sobre o procedimento de reconhecimento extrajudicial da paternidade. O arcabouço existente representa importante evolução reflexa das conquistas sociais e inegável instrumento de consagração dos princípios da afetividade e da dignidade da pessoa humana como fundamento da filiação civil.
MOISÉS ARANTES DA SILVA
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[1] Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.
[2] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 334.