Como é de noção geral, até mesmo por razões deontológicas e principiológicas próprias do regime democrático, sobre todos os responsáveis pela aplicação de recursos públicos paira o dever geral de prestação de contas.
Em tal categoria – responsável pela aplicação de recurso público – se inserem, à obviedade, os beneficiários ou destinatários dos recursos repassados pela União, por exemplo, mediante convênio, acordo ou outros instrumentos congêneres firmados com o CNPQ para fomento à pesquisa científica e tecnológica.
Como instrumento de controle da boa e regular aplicação de tais verbas destinadas pela União destaca-se, pelo viés prático e acentuado interesse que desperta em especial no corpo docente das instituições federais de ensino superior – berço da pesquisa nacional -, o procedimento de Tomada de Contas Especial (TCE) no âmbito do Tribunal de Contas da União (TCU).
Trata-se a TCE, em sintéticas linhas, de procedimento administrativo voltado à apuração de responsabilidade por ocorrência de dano à administração pública federal e à obtenção do respectivo ressarcimento, tendo como pressupostos de instauração, nos termos da lei de regência (Lei nº. 8.443/1992), a (a)omissão no dever de prestar contas; (b) a não comprovação dos recursos repassados pela União; (c) a ocorrência de desfalque ou desvio de dinheiros, bens ou valores públicos e (d) a prática de qualquer ato ilegal, ilegítimo ou antieconômico de que resulte dano ao erário.
A título ilustrativo, constatada a omissão do convenente no dever de prestar contas ao cabo de convênio firmado, v.g, com o CNPQ, instaura-se a TCE que poderá culminar no julgamento pela irregularidade das contas e na imputação de débito e/ou multa ao responsável, em decisão com eficácia de título executivo extrajudicial.
Como soe ser em todo processo administrativo ou judicial, ao interessado é assegurado, nas etapas instrutivas e decisórias da TCE, o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, inc. LIV e LV, CF/88), e é nesse contexto que assoma em relevância a análise do aspecto temporal como fator preponderante para o efetivo exercício das garantias constitucionais citadas e, por consequência, para a validade e regularidade do procedimento de Tomada de Contas Especial.
Como a experiência prática tem revelado, e aqui não se perquire as razões para tanto, o controle das contas dos responsáveis mediante a instauração da TCE junto à Corte de Contas da União tem ocorrido, não raras vezes, anos após a efetiva realização das despesas ou a prestação de contas pertinente, o que torna impraticável ou, quando menos, capenga o exercício da defesa pelo responsável, invariavelmente violando as garantias do contraditório e da ampla defesa que lhes são constitucionalmente assegurados.
Sem embargo da invocação da prescrição do direito de exercer o controle das contas, argumento que também se assenta na notória e malfadada letargia administrativa, o extenso lapso temporal transcorrido entre as circunstâncias que o ensejam e a efetiva instauração do expediente constitui obstáculo instransponível à promoção da Tomada de Contas Especial, exatamente por tolher do interessado a efetiva e material possibilidade de defender-se adequadamente.
O princípio do devido processo legal, cujos corolários são o contraditório e ampla defesa, garante não apenas a citação do responsável e subsequente comunicação dos atos processuais, possuindo abrangência maior e mais cidadã ao assegurar à parte o direito de apresentar defesa realmente hábil a contrapor e elidir os argumentos deduzidos em seu desfavor.
Também por imperativo da segurança jurídica, não é razoável a promoção da responsabilização do gestor de recursos públicos por omissão no dever de prestar contas, ou por qualquer outro motivo que enseja a TCE, quando longos anos separam o fato gerador e a instauração do procedimento. O decurso do tempo, em casos tais, inviabiliza o alcance pelo responsável aos documentos pertinentes e oblitera a lembrança dos atos de gestão então praticados.
No âmbito da Corte de Contas da União tem-se aprioristicamente fixado que o transcurso do interregno de 10 (dez) anos desde o fato gerador dispensa a instauração da Tomada de Contas Especial ou conduz ao arquivamento do procedimento por ventura já instaurado. Em abono, as previsões do art. 6º, inc. II, e art. 19, da IN/TCU 71/2012:
Art. 6º Salvo determinação em contrário do Tribunal de Contas da União, fica dispensada a instauração da tomada de contas especial, nas seguintes hipóteses:
[…]
II – houver transcorrido prazo superior a dez anos entre a data provável de ocorrência do dano e a primeira notificação dos responsáveis pela autoridade administrativa competente;
Art. 19. Aplicam-se as disposições constantes do art. 6º desta Instrução Normativa às tomadas de contas especiais, ainda pendentes de citação válida, que se encontram em tramitação no Tribunal de Contas da União.
Contudo, por força da já consignada dimensão das garantias do contraditório e da ampla defesa, bem como da igualmente invocada segurança jurídica, não se pode conceber que o tempo opera em desfavor do procedimento de TCE apenas quando implementado o lapso referido nos dispositivos supratranscritos, mas em toda situação em que se verifique, efetivamente, que o decurso do tempo, cuja razoabilidade deverá ser aferida no caso concreto, tenha tornado materialmente impossível o exercício pleno do direito de defesa pelo responsável.
Nessas situações, a base normativa para o arquivamento da TCE reside na própria Lei nº 8.443/92 (art. 20 e 21) e no Regimento Interno do TCU (art. 211) que, em uníssono, estabelecem que as contas prestadas pelos responsáveis serão consideradas iliquidáveis quando o caso fortuito ou de força maior, comprovadamente alheio às vontades daqueles, tornar materialmente impossível o seu julgamento de mérito, devendo o Tribunal ordenar o seu trancamento e o arquivamento do processo.
Quanto ao tema, a jurisprudência da Corte de Contas:
TOMADA DE CONTAS ESPECIAL. COMPROMETIMENTO DA AMPLA DEFESA PELO LONGO DECURSO DE PRAZO. DESATENDIMENTO A DILIGÊNCIA DO TCU. TRANCAMENTO DAS CONTAS. 1. Consideram-se iliquidáveis as contas, ordenando-se o seu trancamento, em razão da impossibilidade do exercício de ampla defesa, pelo longo decurso de tempo entre a prática do ato e a citação do responsável. 2. […]. (Tribunal de Contas da União. Tomada de Contas Especial. Acórdão n° 711/2006 – Primeira Câmara. Processo n° 007.028/2005-4. Relator: Ministro Guilherme Palmeira. DOU 05/04/2006). (grifado)
Sobre os responsáveis pela gestão de recursos públicos, como dito, paira o dever geral de prestação de contas. Porém, não se coaduna com o ordenamento pátrio a sujeição dos responsáveis a processos Kafkianos, com exigências formuladas vários anos após a prática dos atos tidos por irregulares.
Assim, conclui-se que o transcurso temporal que gere, in concreto, a impossibilidade material de comprovação da regularidade ou da irregularidade dos atos de gestão de recursos públicos, violando os postulados do contraditório e da ampla defesa, constitui óbice instransponível à instauração ou ao desenvolvimento válido do procedimento de Tomada de Contas Especial, devendo conduzir à dispensa do expediente ou ao seu arquivamento, sem a aplicação de qualquer punição ao responsável.
MOISÉS ARANTES DA SILVA