A busca pela prestação jurisdicional tem se tornado, a cada dia, um caminho mais longo e sinuoso ou “Long and Winding Road”, quase tão semelhante àquele descrito pelos Beatles em sua – brilhante – música de 1970 que é de indagar-se se a musa da obra não é a própria justiça brasileira.
Celebrar a prolação de uma sentença favorável, todavia, representa uma alegria momentânea, porque se enveredar nos caminhos da Execução é o alívio de sair da estrada tortuosa e deparar-se com o Hotel Califórnia dos Eagles.
Uma vez que se adentra os portais do cumprimento de sentença, é quase impossível sair.
É que a busca pelos bens do devedor torna-se uma luta desonesta quando o adversário utiliza da fraude contra os credores e demais artifícios ilegais para furtar-se de quitar o débito, tornando completamente ineficazes muitas das medidas expropriatórias previstas pelo legislador.
A situação se agrava, no entanto, quando a parte ex adversa é Pessoa Jurídica sem quaisquer bens em seu nome, com localização desconhecida e com situação cadastral “inapta” na Receita Federal, sem nunca ter encerrado suas atividades de forma regular.
Para o entendimento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, esse cenário representa o fim da linha, afinal, a PJ está claramente inativa, mas não há a possibilidade de habilitar crédito em um processo de falência que nunca teve início. Os bens passíveis de constrição, por sua vez, foram completamente esvaziados em favor daqueles que exerciam a atividade empresária, de modo que Themis, além de vedados os olhos, fica com as mãos atadas.
Tal posição possibilita e encoraja que os sócios se escondam por detrás de uma personalidade jurídica sem qualquer função social e lesem os credores que deixaram ao longo da sua tentativa frustrada de exercer a empresa.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, por outro lado, tem adotado uma posição com grande potencial de mitigar o problema aqui apresentado: a flexibilização do art. 50 do CC por analogia à súmula 435 do STJ.
Por meio desse entendimento, é possível lançar mão do incidente de desconsideração da personalidade jurídica – ou seja, adquirir a capacidade de atacar os bens pessoais dos sócios para satisfazer uma dívida deixada pela atividade empresarial exercida – por atos de má gestão e encerramento irregular da empresa.
Atualmente, utiliza-se na esfera cível uma interpretação criteriosa do art. 50 do Código Civil, a partir da qual instaura-se o referido incidente quando é atestado o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial entre os bens da Pessoa Jurídica e da Pessoa Física que atua em seu favor.
Todavia, há, no ordenamento jurídico, meios menos criteriosos de se aplicar a desconsideração da personalidade jurídica, abrindo espaço para mais possibilidades de uso.
No âmbito do Direito do Consumidor, por exemplo, aplica-se a Teoria Menor da desconsideração, sendo possível responsabilizar o sócio pelo mero descumprimento da obrigação, pela obstrução ou dificuldade no adimplemento do pactuado, além do abuso de direito do fornecedor em face do consumidor.
Já na execução fiscal, a supracitada Súmula 435 do STJ estabeleceu que será presumida a dissolução irregular da empresa quando ela deixar de funcionar no seu domicílio fiscal sem comunicação aos órgãos competentes, o que legitima o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente. É, indubitavelmente, uma interpretação mais abrangente do conceito de abuso da personalidade jurídica, desvelando novas possibilidades de aplicação do incidente.
É, portanto, que o TJSP tem utilizado a referida súmula, por analogia, em processos de execução de títulos judiciais e extrajudiciais, a fim de que empresas presumidamente dissolvidas de forma irregular não se furtem de cumprir com as obrigações constituídas enquanto ativas.
A este respeito, esclareceu Luiz Felipe Souza de Salles Vieira, em seu livro “A desconsideração da personalidade jurídica: a responsabilização do devedor no crédito civil e aspectos que envolvem a subcapitalização”, 1ª edição, pgs. 48 e 49:
“A Teoria do Disregard foi concebida para as hipóteses em que a pessoa jurídica se apresenta como um obstáculo a ocultar os verdadeiros sujeitos do ato fraudulentamente praticado em nome da sociedade, mas em proveito pessoal do sócio. Por isso que é amplamente aceito (Súmula n º 435, STJ) que o encerramento irregular da empresa é motivo para o redirecionamento da execução fiscal aos sócios ou diretores. […] vide que a respectiva súmula prevê a desconsideração da personalidade jurídica, quando houver alteração de endereço da pessoa jurídica, sem comunicação aos órgãos competentes, o que impossibilita a penhora de bens junto à sociedade e a impossibilidade de citação. No entanto, apesar da súmula em questão ser direcionada ao direito tributário, este entendimento vem sendo aplicado por analogia por diversos tribunais, o que nos possibilita transcrever relevante aspecto no ordenamento jurídico brasileiro.” (VIEIRA, 2018, pág. 48 e 49, grifo nosso)
Vale frisar, no entanto, que a simples insolvência ou o encerramento das atividades da empresa, se consideradas isoladamente, não são suficientes para ensejar a instauração do incidente. Contudo, a juntada de provas como a certidão indicando inaptidão por omissão de declaração de informações fiscais junto à Receita Federal, o esvaziamento de vultoso patrimônio da empresa e o desaparecimento de sua sede são evidências suficientes para demonstrar que a devedora se utilizou de artifícios maliciosos para furtar-se das dívidas.
Percebe-se, pois, que a flexibilização do instituto da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito cível possui respaldo teórico e vem ganhando expressividade em alguns dos tribunais brasileiros.
A jurisprudência do TJMG, todavia, mostra sua tendência ao conservadorismo – por vezes retrógrado – e ainda decide em sentido contrário, recusando-se aceitar o incidente por analogia à Súmula 435 do STJ. O tribunal mineiro entende que a interpretação do art. 50 do CC não deve ser extensiva, de modo que o mencionado “abuso da personalidade jurídica” se limita ao desvio de finalidade e à confusão patrimonial nos exatos termos descritos nos incisos do mesmo dispositivo.
Entretanto, negar ao credor a possibilidade de atingir os bens dos sócios porque a situação fática, apesar de apresentar diversas características de artifícios fraudulentos, não se subsume ipsis litteris à norma é impedir a efetiva satisfação da prestação jurisdicional e colocar ainda mais chicanes na “Infinita Highway’ da execução.
Luísa Fantine Freitas de Moura Luz
Estagiária