O Ministério Público de diversos estados da Federação tem apresentado tese de inconstitucionalidade e inconvencionalidade da Lei 14.230/2021, que alterou significativamente a Lei de Improbidade Administrativa.
Dentre as inovações legislativas encontra-se a extirpação da possibilidade de condenação por improbidade de ato culposo, a diminuição de condutas típicas (revogação de incisos e taxatividade do rol de condutas violadoras de princípios administrativos) aptas a ensejar a responsabilização cível por ato ímprobo.
Ainda, a Lei 14.230 criou um novo regime prescricional para os atos de improbidade, sendo a maior novidade a criação da possibilidade prescricional no curso do processo (prescrição intercorrente).
Na posição defendida pelo MP, tais modificações no regime sancionatório por improbidade administrativa seriam inconstitucionais e inconvencionais, em virtude de tratados e convenções internacionais de combate à corrupção dos quais o Brasil é signatário.
Em apertada síntese, o Ministério Público afirma que o combate à corrupção é um direito humano, existindo direito difuso à probidade administrativa no que as inovações legislativas violariam a vedação de retrocesso e acarretariam em proteção insuficiente.
Há de se dizer, de imediato, que, ao contrário do que tenta fazer parecer o MP, improbidade administrativa e corrupção não são sinônimos. A improbidade é mais ampla que a corrupção, ou seja, há atos reputados como ímprobos que não são atos corruptos.
Esta diferenciação é importante pois no direito brasileiro existem esferas de responsabilidade independentes, de natureza cível, penal e administrativa, de forma que um ato ilícito pode ter repercussões sancionatórias (punitivas) apenas em uma dessas esfera, em duas delas ou mesmo nas três.
E é neste ponto que a tese produzida pelo MP encontra seu primeiro defeito, pois é ao direito penal, ao menos em sua concepção jurídico-filosófica, que são reservadas as sanções dos atos de maior lesividade à sociedade (a ultima ratio).
Assim sendo, os atos ímprobos corruptos, verdadeiramente corruptos, configuram também crimes, de repercussão penal, para além das sanções cíveis e administrativas previstas pela Lei de Improbidade Administrativa.
Portanto, um eventual núcleo de proteção mínima ao direito difuso à probidade administrativa se reservaria aos atos ímprobos criminosos, de natureza incontestavelmente corrupta. Núcleo este que não foi mitigado pela Lei 14.230/2021.
Ademais, as condutas antijurídicas (ilícitas), ensejadoras de sanções penais, cíveis e/ou administrativas, são variáveis com o ordenamento jurídico. Isto é, as condutas aptas a ensejar sanções estatais não são determinadas por uma essência delitiva, mas pela ordem jurídica vigente.
A condução da política sancionatória, portanto, depende da valoração em um determinado tempo da proporcionalidade entre a infração e a sanção, ou seja, atos considerados mais lesivos, em determinado momento histórico, devem ter penas maiores que os atos menos lesivos.
O próprio direito penal passou por modificações desencarceradoras de forma a restringir os casos em que o condenado é efetivamente preso, contribuindo, inclusive, para evitar a superlotação de presídios e a consequente violação de direitos humanos.
Até por isso, não é raro que a sanção cível administrativa da improbidade represente maior penalidade em potencial ao acusado do que a própria sanção penal, afastada (muitas vezes) a possibilidade de prisão, em casos em que, para além da discussão cível, também se discute a responsabilização criminal do agente.
Isto porque as penas previstas, inclusive constitucionalmente, para a condenação por atos ímprobos incluem a suspensão dos direitos políticos; a perda da função pública; a indisponibilidade de bens e o ressarcimento ao erário.
Indisponibilidade de bens que, diga-se, pode ser determinada liminarmente, no início do processo, fazendo com que o acusado passe todo o processo com restrições patrimoniais.
Percebe-se, portanto, que o constituinte estabeleceu alta reprovabilidade aos atos de improbidade, com penas muito graves, ainda que reservando à lei a definição e gradação dos atos e das penas.
Neste contexto, a escolha política de alteração legislativa para restringir os atos tidos como ímprobos pode auferir maior proporcionalidade ao sistema jurídico, e até mesmo, maior defesa à probidade administrativa.
Ao limitar as condutas de improbidade, o legislador escolheu condutas mais graves, e dolosas, como proporcionais às punições previstas pela Lei de Improbidade Administrativa.
Ademais, a quantidade enorme de ações de improbidade administrativa ajuizadas com base em atos menos lesivos gera o chamado “apagão das canetas”, isto é, o agente público, avesso ao risco, passa a atuar para não ser réu de uma ação e não para cumprir sua função pública, vejamos:
“Como se poderá perceber mais adiante, muitas das estratégias de fuga da responsabilização são disfuncionais para a Administração Pública, e o são porque ainda precisamos de uma cultura de gestão de modo mais transparente e republicano esses riscos, a exemplo de um sistema de gestão de riscos. É bem verdade que, infelizmente, ainda que adequadamente implementada a gestão de riscos, esta se mostra insuficiente para garantir ao agente público segurança para definir os limites de sua responsabilização. Isso decorre diretamente do exercício do hiper controle externo, cuja racionalidade não é previsível, maximizando o medo do agente em ser responsabilizado. Assim, cabe demonstrar qual o impacto o risco da responsabilização pessoal do agente público por decisões administrativas pode causar na decisão administrativa, pois dificilmente o agente consegue dissociar de sua situação pessoal e eventuais consequências jurídicas em sua esfera de direitos subjetivos. Isso tanto ocorre que em certas situações-limite, tendo de escolher entre seu próprio bem e o da coletividade, o agente até pode decidir em prol do bem comum assumindo riscos pessoais, mas é exigir demais do gestor que tal proceder seja a regra, pois apesar do munus público, sua função deveria ser só a de gerir e não de se preocupar com isso. Nesses casos, o agente sopesar os riscos de responsabilização a que está sujeito, pois isso pode custar-lhe seus bens por demais valiosos: a liberdade, o patrimônio e o cargo”[1].
Os concursos públicos, obrigatórios para o ingresso nos quadros de servidores permanentes de toda a Administração Pública nacional, tem por objetivo permitir a escolha dos melhores candidatos aos cargos públicos em seleção isonômica.
Sabe-se, atualmente, que há ampla concorrência na tentativa de ocupar cargos das carreiras mais valorizadas do setor público, sendo comum que os aprovados em concursos passem anos em preparação específica para as provas, em um verdadeiro projeto de vida.
Da mesma forma, goste-se ou não do modelo, é comum que os ocupantes de cargos políticos se dediquem não apenas à obtenção de um mandato específico, mas sim a uma carreira pública, ainda que com mais incertezas que os servidores concursados.
Neste sentido, a ampla responsabilização por improbidade administrativa é contrária à própria probidade administrativa, na medida em que o medo de uma responsabilização tão ampla resulta na inércia do agente público em praticar suas funções primordiais:
“Este trabalho procura demonstrar que a hipertrofia do conceito de improbidade administrativa e sua responsabilidade sobre os gestores públicos está a adquirir aspectos dantes inobservados ou mesmo inexistentes. Diante de uma perspectiva de controle punitivista dos agentes públicos, esta gera um novo fenômeno em termos de responsabilização, pois passaram a adotar parâmetros muito próximos da responsabilidade objetiva para sancionar os agentes públicos, em clara violação ao artigo 37, §6º, da CR, que tradicionalmente impõe a responsabilidade subjetiva para fins de regresso nos casos de dolo ou culpa.
[…]
O que está em relevo é o risco de o próprio agente público ser responsabilizado por simplesmente decidir no exercício de cargo ou emprego público. Ao contrário do que se poderia imaginar, a despeito de o agente político ocupar o protagonismo em termos de responsabilização, esse tipo de risco não se restringe à classe política, atingindo todos os gestores públicos e mesmo os servidores mais antigos. E seus impactos são tão expressivos que nos parece interessante avaliarmos e compreendermos, pois as decisões dos administradores orientadas à sua própria proteção têm efeitos drásticos sobre a Administração Pública, pois o objetivo primeiro do gestor passa a ser de ordem subjetiva-protetiva (de ordem pessoal), e não objetivo-finalística (busca do interesse público). E tal forma de administrar desaparece completamente o que se entende por boa administração pública, pois o verdadeiro objetivo do agente público passa a ser esquivar-se de eventual responsabilização, mesmo que isso importe em má administração” [2].
Assim, não há retrocesso em se reduzir os atos de improbidade administrativa, na medida em que uma responsabilização mais criteriosa, e que se limite aos atos de maior reprovabilidade e lesividade social, pode dar aos agentes públicos maior tranquilidade para a tomada de decisões inerentes às suas funções.
Por óbvio, aquele que se propõe a lidar com a coisa pública deve prestar contas à sociedade de seus atos, com a possibilidade de responsabilização pelos erros eventualmente cometidos.
Contudo, o agente público não deve ser refém de um sistema de responsabilização tão amplo que permita a aplicação de sanções, muitas vezes mais graves que a esfera penal, para atos de menor lesividade.
O país precisa de servidores que possam resolver seus inúmeros problemas, dentre eles, inclusive, a corrupção, mas não de servidores que de tão acuados pelo medo de perderem suas carreiras, “apaguem” suas canetas.
Por fim, a prescrição intercorrente estabelecida pela Lei 14.230 vem para aproximar o sistema sancionatório cível por improbidade administrativa do próprio direito penal.
Para além do próprio direito de todos jurisdicionados à duração razoável do processo (artigo 5º, LXXVIII da Constituição), a simples condição de acusado é capaz de gerar forte abalo psíquico e moral ao indivíduo (neste momento, ainda acusado, sem condenação e, portanto, presumidamente inocente).
Alia-se a isto a já supramencionada possibilidade de que o acusado de improbidade administrativa tenha seus bens tornados indisponíveis no início do processo de forma que a prolongação ad aeternum do processo se torna, por si só, uma pena estabelecida antes de decisão judicial sobre o mérito da acusação.
Por isso, a prescrição intercorrente estabelecida pela Lei 14.230/2021 deve ser interpretada como uma forma de efetivação da própria dignidade humana, fundamento da República, cujo conteúdo mínimo reconhece o valor intrínseco do ser humano e sua capacidade de autodeterminação. Na lição de Luís Roberto Barroso:
“São conteúdos mínimos da dignidade o valor intrínseco da pessoa humana, a autonomia da vontade e o valor comunitário. O valor intrínseco é o elemento ontológico da dignidade, traço distintivo da condição humana, do qual decorre que todas as pessoas são um fim em si mesmas, e não meios para a realização de metas coletivas ou propósitos de terceiros. A inteligência, a sensibilidade e a capacidade de comunicação são atributos únicos que servem de justificação para essa condição singular. Do valor intrínseco decorrem direitos fundamentais como o direito à vida, à igualdade e à integridade física e psíquica.
A autonomia da vontade é o elemento ético da dignidade humana, associado à capacidade de autodeterminação do indivíduo, ao seu direito de fazer escolhas existenciais básicas. Ínsita na autonomia está a capacidade de fazer valorações morais e de cada um pautar sua conduta por normas que possam ser universalizadas. A autonomia tem uma dimensão privada, subjacente aos direitos e liberdades individuais, e uma dimensão pública, sobre a qual se apoiam os direitos políticos, isto é, o direito de participar do processo eleitoral e do debate público. Condição do exercício adequado da autonomia pública e privada é o mínimo existencial, isto é, a satisfação das necessidades vitais básicas” [3].
Assim sendo, se de um lado existe interesse público na punição dos atos ímprobos, de outro lado existe interesse do acusado de: 1) saber se será condenado; 2) saber a extensão da sua condenação e a pena a lhe ser aplicada; 3) poder escolher os rumos de sua vida de acordo com a condenação/absolvição e eventual extensão da penalidade aplicada. Pelo que inconstitucional é o estado eterno de incerteza.
Sendo assim, não prospera a argumentação aduzida pelo Ministério Público, sendo constitucional e convencional as alterações legislativas na Lei de Improbidade Administrativa, ainda que em desagrado de parte da sociedade.
De toda forma, a relevância do tema e a amplitude da adesão dos órgãos de acusação à fundamentação de afronta a normas supralegais farão com que o tema, invariavelmente, seja objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal.
Que não se reclame do protagonismo da Corte Constitucional frente à renitência de aceitação de setores da sociedade de que os Poderes Políticos determinem os rumos da política sancionatória e a priorização dos recursos estatais.
Fábio Malheiros de Oliveira Almeida
Advogado
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] GULLO, Felipe Ramirez. “Apagão das Canetas”. FGV RIO. Dissertação de Mestrado. 2022, p. 104. Destaquei.
[2] Idem, p. 105/107, destaquei.
[3] Luís Roberto Barroso, A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público. Mimeografado, dezembro de 2010, p. 38, destaquei.