O conceito de filantropia remonta ao Império Romano, quando a expressão era utilizada como sinônimo de ação de caridade. A evolução histórica proporcionou a disseminação do conceito em diferentes vertentes, sendo que, no Brasil, a prática da filantropia sempre esteve associada à ideia de assistência social, enquanto caridade, assistencialismo, refletindo na elaboração da Constituição cidadã de 1988.
A Constituição de 1988 atribuiu à assistência social o caráter de política pública no âmbito da Seguridade Social, passando a ser direito do cidadão e dever do Estado, com o objetivo de promover o atendimento às necessidades básicas a quem dela precise e de forma gratuita.
A Seguridade Social consiste em um conjunto de ações e políticas sociais que agem como um sistema de proteção, visando assegurar à população direitos básicos relativos à saúde, previdência e assistência social, dessa forma a prática da filantropia, sempre presente na sociedade, é uma oportunidade de participar em ações de transformação social em conjunto com o Estado, consolidando a responsabilidade social.
A Constituição, ao incluir a assistência social como política pública de Seguridade Social, transfere a responsabilidade da execução de políticas sociais para as entidades filantrópicas prestadoras de serviços de saúde. Ocorre que a entidade filantrópica não aufere lucros, obtendo receita precipuamente de doações, convênios e custeio pelo SUS, desse modo as receitas da instituição, por si só, já se fazem deficitárias, competindo ao poder público o reequilíbrio da relação contratual da entidade filantrópica frente aos demais contratantes.
Diante da função social desenvolvida pelos hospitais mantidos pelas fundações sem fins lucrativos e do risco de comprometimento das atividades na área da saúde, o legislador pátrio editou lei específica à proteção patrimonial dos hospitais filantrópicos e Casas de Caridade.
A recente Lei n. 14.344 de 2022 versa, exclusivamente, sobre a impenhorabilidade de bens de hospitais filantrópicos e Santas Casas, ressaltando que os bens das entidades beneficentes não poderão responder por dívida civil, comercial, fiscal e previdenciária, excluindo-se desse hall as dívidas referentes ao próprio bem dado em garantia real e créditos trabalhistas.
Art. 2º Os bens de hospitais filantrópicos e Santas Casas de Misericórdia mantidos por entidades beneficentes certificadas nos termos da Lei Complementar nº 187, de 16 de dezembro de 2021, são impenhoráveis e não responderão por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, salvo nas hipóteses previstas nesta Lei.
Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende os imóveis sobre os quais se assentam as construções, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem o bem, desde que quitados.
O Código de Processo Civil, em seu artigo 833, IX, também prevê a impossibilidade de penhora de recursos públicos de entidades filantrópicas quando recebidos para aplicação compulsória em saúde.
Art. 833 – São impenhoráveis:
(…)
IX – os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social;
O repasse do recurso público destinado à aplicação compulsória em saúde é regulamentado pelo Decreto Estadual 45.468/2010, que dispõe sobre as normas de transferência de recursos financeiros repassados pelo Fundo Estadual de Saúde:
Art. 1º – A transferência de recursos, por meio do Fundo Estadual de Saúde – FES, objetivando o desenvolvimento das ações e serviços de saúde, executados ou coordenados pela Secretaria de Estado de Saúde – SES, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS, será efetivada mediante Termo de Compromisso, para transferência intergovernamental para o SUS, ou celebração de Termo de Metas, para transferência voluntária, nos termos deste Decreto.
Embora a lei 14.344 de 2022 preveja ressalvas na hipótese de execução trabalhista, o Código de Processo Civil reforça a impenhorabilidade e a jurisprudência é objetiva ao determinar a desconstituição da penhora quando se tratar de recursos destinados à saúde.
Nesse sentido o Superior Tribunal Federal fixou precedente em Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 664 de Relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, na qual foi declarada a inconstitucionalidade das decisões judiciais dos Tribunais Trabalhistas que determinaram o bloqueio de verbas públicas oriundas do Fundo Estadual de Saúde do Espírito Santo em contas da Fundação.
EMENTA: CONSTITUCIONAL. FINANCEIRO. CONSTRIÇÃO DE RECEITAS PÚBLICAS POR DECISÕES JUDICIAIS. RECURSOS DE FUNDO ESTADUAL DE SAÚDE DESTINADOS À EXECUÇÃO DE ATIVIDADES VIA CONTRATOS DE GESTÃO FIRMADOS PELO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO COM ENTIDADES DE TERCEIRO SETOR. INDEPENDÊNCIA ENTRE OS PODERES E LEGALIDADE ORÇAMENTÁRIA. ARGUIÇÃO JULGADA PROCEDENTE. 1. Decisões judiciais que determinam o bloqueio, penhora ou liberação, para satisfação de créditos trabalhistas, de receitas públicas oriundas do Fundo Estadual de Saúde objeto de contratos de gestão firmados entre o Estado do Espírito Santo e entidades de terceiro setor violam o princípio da legalidade orçamentária (art. 167, VI, da CF), o preceito da separação funcional de poderes (art. 2º c/c art. 60, § 4º, III, da CF), o princípio da eficiência da Administração Pública (art. 37, caput, da CF) e o princípio da continuidade dos serviços públicos (art. 175 da CF). Precedentes: ADPF 275, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 17/10/2018, DJe de 27/6/2019; ADPF 556, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 14/2/2020, DJe de 6/3/2020; ADPF 620-MC-Ref, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 3/4/2020, DJe de 12/5/2020; ADPF 484, Rel. Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 4/6/2020, pendente publicação de acórdão; entre outros julgados. 2. Medida Cautelar confirmada e ação julgada procedente.
As entidades filantrópicas são as responsáveis pela prestação de serviços à saúde de caráter social, através da criação, administração e manutenção dos hospitais do nosso país, principalmente aqueles localizados nas cidades interioranas e com população predominantemente carente, tendo em vista que as grandes empresas do ramo não possuem interesse em se instalarem nas regiões de menor potencial econômico.
Imprescindível, portanto, para a configuração da proteção do direito à saúde como direito fundamental, consagrado pela Constituição Federal de 1988, que os hospitais filantrópicos e as Santas Casas de Misericórdia estejam resguardados pela impenhorabilidade de seus bens.
Desse modo, é cabível recurso de Embargos à Execução e Agravo de Petição contra a decisão judicial que, visando satisfazer o crédito do exequente, determinar o bloqueio das verbas destinadas às entidades filantrópicas para aplicação em saúde e assistência social.
CAMILA GODINHO BICALHO
Advogada OAB/MG 214.528