O direito, como concebido no Brasil, constituído de regras rígidas, estáveis e de complexa modificação, tem sido desafiado por novos direitos surgidos em razão da imparável evolução da sociedade.
O direito ambiental é, sem dúvida, um dos grandes provocadores do tradicional direito brasileiro. A sua natureza multidisciplinar, a sua intrínseca interdisciplinariedade e interação com outros ramos da ciência o tornam matéria complexa, de constante alteração e, conseguintemente, de difícil regulação.
Conforme pondera o inexorável Édis Milaré[1]: “O Direito do Ambiente assemelha-se à tecnologia, em sua evolução – nas devidas proporções, é verdade. O que ontem era prospectiva, hoje se converteu em retrospectiva. Ora, o Direito do Ambiente movimenta-se com a tecnologia por causa dos fatos novos que se sucedem, provocando reações no meio ambiente; e movimenta-se como a tecnologia, analogicamente, em razão da velocidade que caracteriza os processos de transformação neste nosso mundo. Seria o caso de se pensar numa ‘tecnologia jurídico-ambiental’”.
Como, portanto, considerando a absurda complexidade e lentidão do processo legislativo brasileiro, produzir leis que acompanhem a constante mutação e evolução do direito ambiental? Eis do desafio.
Há, contudo, técnicas legislativas das quais têm se valido o legislador brasileiro que, se ainda não representam a solução definitiva do problema, têm servido ao constante rejuvenescimento do Direito do Ambiente. Uma delas, a que nos ateremos no presente artigo, é a edição de normas abertas, de caráter abstrato e conceitual, que reclamam, para a efetividade da sua aplicação, complementação através de outras normas de cunho específico, editadas em maioria por órgãos técnicos que cuidam de assegurar a imprescindível conexão entre o Direito e as ciências.
Conceitualmente as normas abertas se assemelham àquelas denominadas por Maria Helena Diniz, citada em obra do ministro Alexandre de Moraes[2], de normas com eficácia relativa dependente de complementação legislativa, e que constituem “preceitos constitucionais que têm aplicação mediata, por dependerem de norma posterior, ou seja, de lei complementar ou ordinária, que lhes desenvolva a eficácia, permitindo o exercício do direito ou do benefício consagrado. Sua possibilidade de produzir efeitos é mediata, pois, enquanto não for promulgada aquela lei complementar ou ordinária, não produzirão efeitos positivos, mas terão eficácia paralisante de efeitos de normas precedentes incompatíveis e impeditiva de qualquer conduta contrária ao que estabelecerem.”.
As normas abertas ambientais, vale ressaltar, são complementadas por normas infralegais, editadas por conselhos ou órgãos técnicos a quem a própria lei atribui competência.
É o caso, por exemplo, da Deliberação nº 236 do Conselho Estadual de Política Ambiental do Estado de Minas Gerais – DN COPAM Nº 236/2019 – publicada em 02 de dezembro de 2019, que revogou a antiga DN COPAM Nº 226/2018. Referida deliberação normativa regulamentou o disposto no art. 3º, inciso III, alínea ‘m’ da Lei Estadual nº 20.922/2013 para estabelecer o que podem ser consideradas atividades eventuais ou de baixo impacto ambiental para fins de intervenção em área de preservação permanente.
Nesses termos, prevê a legislação estadual:
Art. 3º Para fins desta Lei, consideram-se:
III – atividade eventual ou de baixo impacto ambiental:
E complementa a Deliberação Normativa COPAM nº 236/19:
O CONSELHO ESTADUAL DE POLÍTICA AMBIENTAL, no uso das atribuições que lhe conferem o inciso I do art. 14 da Lei 21.972, de 21 de janeiro de 2016, o inciso I do art. 3º do Decreto nº 46.953, de 23 de fevereiro de 2016, e tendo em vista o disposto na alínea “m” do inciso III do art. 3º da Lei nº 20.922, de 16 de outubro de 2013, DELIBERA:
Art. 1º − Ficam estabelecidas as seguintes atividades eventuais ou de baixo impacto ambiental para fins de intervenção em área de preservação permanente:
I − sistemas de tratamento de efluentes sanitários em moradia de agricultores familiares, remanescentes de comunidades quilombolas e outras populações extrativistas e tradicionais em áreas rurais, desde que não haja supressão de fragmento de vegetação nativa;
II − açudes e barragens de acumulação de água fluvial para usos múltiplos, com até 10 ha (dez hectares) de área inundada, desde que não haja supressão de fragmento de vegetação nativa;
III − poços manuais ou tubulares para captação de água subterrânea, com laje sanitária de até 4m² (quatro metros quadrados), desde que obtida a autorização para perfuração quando couber, e que não haja supressão de fragmento de vegetação nativa, inclusive para abertura de estradas de acesso;
IV − dispositivo de até 6m² (seis metros quadrados), em área de preservação permanente de nascentes degradadas, para proteção, recuperação das funções ecossistêmicas, captação de água para atendimento das atividades agrossilvipastoris e das necessidades das unidades familiares rurais;
V − estrutura para captação de água em nascentes, visando sua proteção e utilização como fontanário público, localizadas em área urbana detentora de iluminação pública, solução para esgotamento sanitário, sistema de abastecimento de água e drenagem pluvial;
VI − pequenas retificações e desvios de cursos d’água, em no máximo 100m (cem metros) de extensão, e reconformações de margens de cursos d’água, em áreas antropizadas privadas, visando a contenção de processos erosivos, segurança de edificações e benfeitorias;
VII – travessias, bueiros e obras de arte, como pontes, limitados a largura máxima de 8m (oito metros), alas ou cortinas de contenção e tubulações, em áreas privadas;
VIII − rampas de lançamento, piers e pequenos ancoradouros para barcos e pequenas estruturas de apoio, com ou sem cobertura, limitados a largura máxima de 12m (doze metros), desde que não haja supressão de fragmento de vegetação nativa;
IX − edificações em lotes urbanos aprovados até 22 de julho de 2008, devidamente registrados no Cartório de Registros de Imóveis, desde que situados às margens de vias públicas dotadas de pavimentação, iluminação pública, solução para esgotamento sanitário, sistema de abastecimento de água e drenagem pluvial;
X – rampas para voo livre e monumentos culturais e religiosos nas áreas de preservação permanente a que se referem os incisos V, VI, VII e VIII do art. 9º da Lei nº 20.922 de 16 de outubro de 2013, limitados a 5.000m² (cinco mil metros quadrados), incluídas as infraestruturas de apoio, desde que não haja supressão de maciço florestal. Parágrafo único – As edificações a que se refere o inciso IX implantadas a partir da publicação desta deliberação normativa deverão observar a faixa não edificante prevista no inciso III do art. 4º da Lei Federal nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979.
Art. 2º – Independem de autorização a permanência de edificações e benfeitorias, enquadradas em quaisquer dos incisos do art. 1º, estabelecidas em área de preservação permanente em data anterior à Medida Provisória nº 1956-50, de 26 de maio de 2.000, que não tenham implicado em supressão de vegetação nativa.
Art. 3º – As autorizações para intervenções em área de preservação permanente passíveis de regularização do uso de recursos hídricos somente produzirão efeito após sua obtenção.
Art. 4º – A intervenção em área de preservação permanente para atividades eventuais ou de baixo impacto ambiental não poderá comprometer as funções ambientais desses espaços, especialmente: I − a estabilidade das encostas e margens dos corpos de água; II − os corredores ecológicos formalmente instituídos; III − a drenagem e os cursos de água intermitentes; IV − a manutenção da biota; V − a regeneração e a manutenção da vegetação nativa nas áreas de preservação permanente nas quais não haverá intervenção; e VI − a qualidade das águas.
Art. 5º − Ficam revogadas: I − Deliberação Normativa Copam nº 73, de 08 de setembro de 2004; II − Deliberação Normativa Copam nº 114, de 10 de abril de 2008; e III − Deliberação Normativa Copam nº 226, de 25 de julho de 2018.
Art. 6º − Esta deliberação normativa entra em vigor na data de sua publicação.
Belo Horizonte, 02 de dezembro de 2019. (a) GERMANO LUIZ GOMES VIEIRA. Secretário de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e Presidente do Conselho Estadual de Política Ambiental.
Com efeito, em decorrência de expressa competência que lhe fora atribuída por lei o Conselho Estadual de Política Ambiental, refrescando a legislação ambiental, publicou a DN 236/2019 fixando as atividades que podem ser consideradas eventuais ou de baixo impacto e justificar a legalização de intervenções em áreas de preservação permanente.
E dentre as atividades listadas na DN 236/2019, cumpre-nos destacar duas que nos parecem atender perfeitamente ao objetivo das normas abertas, qual sejam a do inciso IX, do art. 1º, que diz respeito a edificações em lotes urbanos aprovados até 22 de julho de 2008, devidamente registrados no Cartório de Registros de Imóveis, desde que situados às margens de vias públicas dotadas de pavimentação, iluminação pública, solução para esgotamento sanitário, sistema de abastecimento de água e drenagem pluvial. As citadas atividades representam inequívoca opção do órgão gestor ambiental, por razões de política urbana, pela regularização de intervenções/construções que já estejam consolidadas no ambiente urbano ou rural.
Quer isto dizer que no Estado de Minas Gerais, momentaneamente, é possível, dentro dos critérios previstos na DN COPAM 236/2019, o licenciamento/legalização de construções realizadas em lotes urbanos aprovados até 22 de julho de 2008, que representem intervenção em área de preservação permanente.
Nada obstante, tratando-se de opção do órgão gestor ambiental de regulamentação de norma ambiental aberta, a evolução da política ambiental ou de regularização urbana pode, a qualquer tempo, determinar a alteração das disposições da multicitada Deliberação Normativa e, por consequência, da legislação ambiental, sem que seja necessária a observância de moroso processo legislativo. Esta a real função da edição de normas abertas.
Assim, em razão das suas peculiares características, a edição de normas abertas constitui importante ferramenta para o Direito do Ambiente na medida em que permite que a legislação se mantenha constantemente atualizada e relacionada com a evolução da sociedade e das ciências.
Quanto ao exemplo especificamente citado da Deliberação Normativa COPAM Nº 236/2019, fica o alerta para que todos que se enquadrem nas atividades listadas aproveitem a oportunidade para regularizar a sua situação, especialmente porque, como visto, as atuais previsões podem ser alteradas a qualquer tempo.
BRUNO PENA DO CARMO
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[2] MORAES, Alexandre. Direito constitucional. – 19. ed. – São Paulo: Atlas, 2006.