Com a finalidade de balizar a condução de compras e contratações de serviços pelos administradores, o legislador buscou a criação de um regramento que atendesse, sobretudo, ao interesse público. Não obstante ser um princípio de conceito jurídico indeterminado[1], é possível que administrador o reconheça diante da leitura arrimada nos princípios constitucionais da legalidade, moralidade e impessoalidade dispostos no art. 37, caput da Constituição Federal de 1988.
Assim sendo, com a finalidade suso descrita, foi elaborada a Lei de n.º 8.666/93, conhecida como Estatuto de Licitações, para diminuir a atuação demasiada e inconsequente do administrador público que, mais do que tudo, tem o dever intrínseco de agir em probidade com o erário.
Vale mencionar que os preceitos foram recepcionados e muitas vezes replicados pelo novo instituto, Lei de n.º 14.133/2021 (JUSTEN FILHO, 2022).
Dentre as mais diversas exigências positivadas para orientar a relação do particular com a Administração, para o presente trabalho importa a vedação ao contrato verbal fora das ressalvas legais e o dever de anular os atos irregulares como reflexo do princípio da autotutela.
Nesse diapasão, o imperativo legal de declaração de nulidade de contrato verbal com a administração, ressalvadas as hipóteses previstas, estão presentes em ambas legislações, conforme visto com a leitura do parágrafo único do art. 60 da Lei de n.º 8.666/93, e sua equivalente alusão na nova lei de licitações – §2º do art. 95, da Lei de n.º 14.133/21, in verbis:
Art.60. […] Parágrafo único. É nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo o de pequenas compras de pronto pagamento, assim entendidas aquelas de valor não superior a 5% (cinco por cento) do limite estabelecido no art. 23, inciso II, alínea “a” desta Lei, feitas em regime de adiantamento.
Art. 95. […] § 2º É nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo o de pequenas compras ou o de prestação de serviços de pronto pagamento, assim entendidos aqueles de valor não superior a R$ 10.000,00 (dez mil reais).
Como visto, tendo por nulo e sem nenhum efeito o contrato realizado de maneira verbal com a Administração Pública, seria plenamente possível – apesar de inválida – a ocorrência de uma situação em que o administrador não pague a avençada oralmente com o contratado, sustentando que, diante da patente nulidade do ato não seria cabível o pagamento, devendo, portanto, ser anulado sob risco de responsabilização.
De fato a Administração tem o dever de anular os próprios atos quando eivados de vícios de legalidade, principalmente quando importam em irregularidades capazes de causar dano ao erário, sendo tal imposição corolário do princípio da autotutela[2].
Sobre isso explica o ilustre professor:
A Administração Pública comete equívocos no exercício de sua atividade, o que não nem um pouco estranhável em vista das múltiplas tarefas a seu cargo. Defrontando-se com esses erros, no entanto, pode ela mesma revê-los para restaurar a situação de regularidade. Não se tratando apenas de uma faculdade, mas também de um dever, pois que não se pode admitir que, diante de situações irregulares, permaneça inerte e desinteressada. Na verdade, só restaurando a situação de regularidade é que a Administração observa o princípio da legalidade, do qual a autotutela é um dos mais importantes corolários (CARVALHO FILHO, 2020. p.37).
Entretanto, em que pese o dever aludido, seria inconcebível que o administrador se recusasse a efetuar o pagamento do valor avençado utilizando-se, para tanto, do argumento da nulidade contratual, uma vez que ensejaria ao enriquecimento ilícito da própria Administração que optou por deixar de formalizar a contratação da maneira adequada.
Diante do aludido conflito, deverá prevalecer o contrato firmado para evitar o enriquecimento ilícito da Administração, isso ainda que a contratação tenha sido oral e fora das hipóteses previstas. Ao menos é o que leciona o Superior Tribunal de Justiça, cujo colegiado assentou os seguintes entendimentos:
ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. FORMA
VERBAL. NÃO-PAGAMENTO. COBRANÇA JUDICIAL. PRINCÍPIO
DO NÃO ENRIQUECIMENTO ILÍCITO. PAGAMENTO DEVIDO.
1. De acordo com o art. 60, p. ún., da Lei n. 8.666/93, a Administração Pública direta e indireta, via de regra, está proibida de efetuar contratos verbais. Nada obstante, o Tribunal a quo constatou que houve a entrega da mercadoria contratada pelo ente federativo (fls. 201/202).
2. Se o Poder Público, embora obrigado a contratar formalmente, opta por não fazê-lo, não pode, agora, valer-se de disposição legal que prestigia a nulidade do contrato verbal, porque isso configuraria uma tentativa de se valer da própria torpeza, comportamento vedado pelo ordenamento jurídico por conta do prestígio da boa-fé objetiva (orientadora também da Administração Pública).
3. Por isso, na ausência de contrato formal entre as partes – e, portanto, de ato jurídico perfeito que preservaria a aplicação da lei à celebração do instrumento -, deve prevalecer o princípio do não enriquecimento ilícito. Se o acórdão recorrido confirma a execução do contrato e a realização da obra pelo recorrido, entendo que deve ser realizado o pagamento devido pelo recorrente.
4. Inclusive, neste sentido, é de se observar que mesmo eventual declaração de nulidade do contrato firmado não seria capaz de excluir a indenização devida, a teor do que dispõe o art. 59 da Lei n. 8.666/93.
5. Recurso especial não provido
REsp 1.111.083/GO, 2ª T., rel. Min. Mauro Campbell Marques. J. em 26.11.2013. DJe de 06.12.2013.
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE COBRANÇA. SERVIÇOS EFETIVAMENTE PRESTADOS À SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. LOCUPLETAMENTO INDEVIDO À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.
1. O enriquecimento ilícito é vício social no qual incide a Administração Pública nas hipóteses em que, a pretexto da inexistência de continuação de vínculo formal, persiste no recebimento dos serviços, excluindo de pagá-los alegando a própria torpeza.
2. Recurso especial desprovido, mantendo-se a sentença calçada em perícia, divergindo-se do E. Relatos.
REsp. 1.096.917/PE, 1ªT. Rel. Min. Luiz Fux. J. em 26.05.2009. DJe de 09.10.2009.
Conforme demonstrado, há sim um contrato irregular concebido com nulidade formal e cuja existência fere frontalmente o princípio da legalidade, devendo o administrador anular o ato, através do exercício da autotutela administrativa preconizada na Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal.
Portanto, no caso de a Administração realizar contrato verbal fora das hipóteses previstas, a exemplo da contratação de serviços no âmbito da Lei de n.º 8.666/93 e de compras e serviços com valor superior ao estabelecido na Lei de n.º 14.133/2021, por todo exposto, deverá prevalecer o princípio do não enriquecimento ilícito, não obstante vicio formal do contrato.
ANTÔNIO AUGUSTO REIS E REIS
Estagiário Acadêmico
Referências bibliográficas:
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n.º 473. Tese definida no RE 594.296, rel. min. Dias Toffoli, P, j. 21-9-2011, DJE 146 de 13-2-2012, Tema 138
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp. 1.096.917/PE, 1ªT. Rel. Min. Luiz Fux. J. em 26.05.2009. DJe de 09.10.2009.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp. 1.111.083/GO (2008/0113350-4). Rel. Min. Mauro Campbell Marques. J. em 26.11.2013. DJe de 06.12.2013.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Curso de direito administrativo. 34.ed. São Paulo: Atlas, 2020.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos: lei 14.133/2021. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.
[1] Entendimento do professor José dos Santos Carvalho Filho, que justifica que apesar de ser um conceito jurídico indeterminado, caberia ao intérprete identificar, diante do caso concreto, se se trataria ou não de interesse público, sendo, portanto, determinável.
[2] O STF, inclusive, publicou súmula tratando do caso, a Súmula 473: “A administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”.