A Lei nº. 14.230/2021 (conhecida como “nova lei de improbidade administrativa”), que entrou em vigor no dia 26/10/21, trouxe profundas alterações nas bases fundantes da Lei nº. 8.429/92, de tal sorte que já se fala em um “novo sistema de responsabilização” por atos de improbidade administrativa.
As mudanças atingiram não só o direito administrativo estritamente considerado, mas também o tratamento constitucional, cível e processual da matéria.
No plano material, a título de exemplificação, foi suprimida a possibilidade de configuração de improbidade por conduta culposa; a configuração da improbidade administrativa por violação de princípios passou a exigir a demonstração de lesividade relevante e a prática de uma das condutas previstas em rol taxativo; novos tipos de improbidade foram inseridos na lei e outros excluídos; alterou-se os parâmetros das sanções aplicáveis.
No plano processual, também foram implementadas diversas alterações, como a criação de uma ação de improbidade típica; a atribuição da legitimidade para propositura da ação exclusivamente ao Ministério Público e a fixação de novos prazos de prescrição geral e intercorrente.
Dentre as inúmeras dúvidas e discussões surgidas a partir da vigência da nova lei, interessa ao presente artigo a sua aplicabilidade imediata e de forma retroativa aos processos pendentes. A Lei nº. 14.230/2021 se aplica imediatamente aos processos em curso e às condutas consumadas no passado?
A resposta a tal questionamento passa, em linha de princípio, pela análise do regime jurídico pertinente ao ingresso de nova lei no ordenamento pátrio. Como é cediço, a Constituição Federal consagra, quanto ao tema, regras gerais vedando o efeito retroativo do novo diploma jurídico.
Dispõe o texto constitucional, por exemplo, que não existe infração criminal ou administrativa sem norma legal assim o prevendo, conforme se extrai de diversas passagens do seu art. 5º, em especial dos seus incisos XXXIX1 e LIV2.
Na mesma perspectiva, prescreve o art. 5º, inc. XXXVI, que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
A vedação à retroatividade da lei nova é uma decorrência da própria legalidade. A lei nova que adota regime jurídico diverso daquele então vigente não pode, em regra, ser aplicada retroativamente a fatos pretéritos, sob pena de desvirtuamento da própria ordem jurídica.
Nada obstante, a própria Carta Magna traz disciplina diversa quando se trata do implemento de novo regime legal mais benéfico ao acusado. Conforme redação expressa do seu art. 5º, inc. XL, “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu’.
Embora o texto constitucional se refira à “lei penal”, é evidente, como leciona Marçal Justen Filho, “que essa garantia se aplica a qualquer norma de natureza punitiva, na medida em que não existe qualquer característica diferenciada da lei penal que propiciasse a retroatividade da lei punitiva não penal”3.
E essa compreensão é crucial para a discussão a que se propõe o presente artigo.
O sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa integra o que se convencionou chamar de “direito administrativo sancionador”, de sorte que a ele também se aplicam princípios e garantias próprias do direito penal, como a retroatividade da lei mais benéfica, positivada no art. 5, inc. XL, da CF/88.
Tal entendimento há muito prevalece na jurisprudência pátria, inclusive nos Tribunais Superiores, conforme se depreende, v.g, de julgado expressivo do Superior Tribunal de Justiça (STJ):
“Realmente, o objeto próprio da ação de improbidade é a aplicação de penalidades ao infrator, penalidades essas substancialmente semelhantes às das infrações penais. Ora, todos os sistemas punitivos estão sujeitos a princípios constitucionais semelhantes, e isso tem reflexos diretos no regime processual. É evidente, assim – a exemplo do que ocorre, no plano material, entre a Lei de Improbidade e o direito penal –, a atração, pela ação de improbidade, de princípios típicos do processo penal.”4 (grifado)
Sedimentando a exegese, a nova Lei nº. 14.230/21 foi expressa e textual nesse sentido, incluindo o §4º no art. 1º, da Lei nº. 8.429/1992, com a seguinte redação:
Art. 1º O sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa tutelará a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções, como forma de assegurar a integridade do patrimônio público e social, nos termos desta Lei.
[…]
§ 4º Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador. (grifado)
Quanto ao tema, calha à colação o escólio de José Miguel Garcia Medina, extraído de recente artigo publicado sobre o novo diploma legal5:
Na presente edição, nos limitaremos a chamar a atenção para a seguinte questão: A nova lei aplica-se retroativamente, a atos praticados antes de sua aprovação? (grifado)
[…]
Tratando-se, como efetivamente se trata, de parte do direito sancionador, a resposta que se impõe à primeira das questões formuladas é uma só: Tal como a lei penal (art. 5.º, caput, XL, da Constituição Federal), assim também a legislação que prevê sanções por atos de improbidade não retroage, salvo para beneficiar o réu. (grifado)
[…]Assim, a nova tipologia normativa dos atos de improbidade administrativa e de suas sanções, por força do art. 5.º, caput, XL da Constituição, cumulado com o artigo 1.º, § 4.º, da Lei 8.429/1992 (na redação da Lei 14.230/2021), aplica-se aos atos praticados antes de sua vigência, se para beneficiar o réu. (grifado)
No mesmo sentido, o escólio do já citado Marçal Justen Filho, extraído também de obra atual dedicada ao tema6:
“As alterações introduzidas pela Lei n. 14.230/2021, em todas as passagens que configurem tratamento mais benéfico relativamente à configuração ou ao sancionamento por improbidade administrativa, aplicam-se a todas as condutas consumadas em data anterior à sua vigência”.
“Isso significa que, mesmo no caso de processos já iniciados, aplica-se a disciplina contemplada na Lei nº. 14.230/2021. Portanto e por exemplo, tornou-se juridicamente inexistente a improbidade meramente culposa, tal como não se admite mais a presunção de ilicitude ou de dano ao erário. Logo, os processos em curso que envolvam pretensão de aplicação da disciplina original da lei 8.429 subordinam-se às regras mais benéficas da Lei 14.230/2021.”
Ainda segundo o mesmo autor, também os dispositivos de natureza processual trazidos pela nova lei se aplicam de forma imediata aos processos em curso:
“Apanham inclusive os processos em curso. Os eventos processuais consumados em data anterior ao ajuizamento não são afetados pela superveniência da nova Lei. No entanto, aplicam-se as normas da Lei 14.230/2021 aos atos e fatos processuais a serem verificados em data posterior à sua vigência”7.
Portanto, a partir do regramento constitucional vigente, das disposições expressas contidas na Lei nº. 14.230/2021 e do entendimento doutrinário e jurisprudencial que já vem sendo construído sobre a matéria, pode-se afirmar que o novo regramento legal deve ser aplicado de forma imediata e retroativa naquilo for mais benéfico para os acusados.
Porém, como toda alteração legislativa, as inovações trazidas pela Lei 14.230 serão cada vez mais submetidas à experimentação na realidade da vida jurídica, incumbindo aos Tribunais Superiores, em especial, dirimir as controvérsias e divergências instauradas.
A propósito, vale registrar que o Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão publicada no dia 04/03/22, reconheceu a existência de repercussão geral do Tema 1199, que versa exatamente sobre a “eventual (ir)retroatividade das disposições da Lei nº. 14.230/2021”8. Dado o caráter vinculante da decisão a ser proferida (precedente obrigatório), considerando a sistemática processual vigente, a mesma representará a uniformização da solução jurídica dada pelo Poder Judiciário, sendo, pois, de extrema relevância para o cenário político, social e jurídico do país.
Referências
1: “XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.
2: “LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
3: Marçal Justen Filho. Reforma da lei de improbidade administrativa comentada e comparada: Lei 14.230, de 25 de outubro de 2021. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 267.
4: Trecho do voto proferido pelo então Ministro Teori Albino Zavasck no julgamento do REsp 885.836MG, de sua relatoria, julgado em 26/06/2007. No mesmo sentido: “O art. 5º, XL, da Constituição da República prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal, sendo cabível extrair-se do dispositivo constitucional princípio implícito do Direito Sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica retroage no caso de sanções menos graves, como a administrativa” (STJ, AgInt no REsp 1602122/RS, Relatora Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 07/08/2018)”.
5: MEDINA, José Miguel Garcia. “A nova Lei de Improbidade Administrativa deve ser aplicada retroativamente? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-nov-03/processo-lei-improbidade-aplicada-retroativamente#sdfootnote1sym. Acesso 16/11/2021.
6: Marçal Justen Filho. Reforma da lei de improbidade administrativa comentada e comparada: Lei 14.230, de 25 de outubro de 2021. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 268.
7: Marçal Justen Filho. Reforma da lei de improbidade administrativa comentada e comparada: Lei 14.230, de 25 de outubro de 2021. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 268/269.
8: O debate ocorre no âmbito do ARE 843.989, de relatoria do Ministro Alexandre de Morais, tendo como ponto central a retroatividade das disposições da Lei em relação, em especial, (I) a necessidade do elemento subjetivo – dolo – para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive do artigo da 10 da LIA; e (II) a aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente.
MOISÉS ARANTES DA SILVA
Advogado OAB/MG 126.380