Conforme cediço, uma gravidez é, na grande maioria das vezes, circunstância cercada de muito planejamento, verdadeiro sonho de um casal. E mesmo na hipótese de não ter sido planejada, envolve inegável apelo emocional do casal, especialmente da mulher, que cuidará de gestar uma vida em seu útero por nove meses, até o esperado nascimento da criança.
Nada obstante, há situações imprevisíveis já documentadas pela melhor literatura médica que podem implicar severas restrições ao desenvolvimento do feto no útero materno. Algumas destas chegam, inclusive, a inviabilizar a vida extrauterina, assim como, dentre outras, a anencefalia e a triploidia. A respeito, vejamos excerto de artigo publicado pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia:
“São diversas as malformações congênitas do sistema nervoso central que podem resultar em formas extremas incompatíveis com a vida plena extrauterina. Entre elas, as menos raras são a holoprosencefalia e as formas de craniorraquisquise, mielosquise e meningoencefalocele total. Tais defeitos de fechamento do tubo neural são anomalias espectrais que podem estar presentes isoladamente ou em associação com outras alterações em órgãos distintos, originando síndromes malformativas multissistêmicas de variadas etiologias. Note-se que a própria anencefalia pode estar associada a problemas cromossômicos, como as trissomias dos cromossomos 18 e 13, triploidias e alterações estruturais, além de diversas outras anomalias congênitas, como defeitos ósseos, malformações cardíacas, renais e da parede abdominal.”.1
Mas apesar de todo o conhecimento científico já produzido sobre o assunto, no Brasil o aborto ainda é criminalizado por previsões de um código penal cuja origem remonta a década de 1940. Segundo as previsões do código penal brasileiro vigente, somente não será considerado crime o aborto que seja praticado por médico, nas seguintes situações:
“Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário; I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro; II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”.
Com efeito, afora as citadas e restritas hipóteses, qualquer forma de interrupção voluntária da gravidez é considerada crime e, por conseguinte, passível de penalização pelo direito brasileiro.
No caso da anencefalia, contudo, em razão do amplo conhecimento já produzido pela literatura médica acerca das severas restrições que a condição implica ao feto, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou, através da ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF) nº 54, firmando o entendimento de que não encontra tipicidade penal a conduta de interrupção de gravidez de feto anencéfalo, porquanto não se evidencia no caso viabilidade de vida extrauterina.
Para conforto do exposto, vejamos a ementa da ADPF nº 54:
ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações. FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal. ADPF 54, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 12/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-080 DIVULG 29-04-2013 PUBLIC 30-04-2013 RTJ VOL-00226-01 PP-00011.
Sobre o mesmo tema, também já categoricamente se manifestou o Conselho Federal de Medicina:
“Todas as mães têm a feliz expectativa de vestir seu bebê logo após o nascimento; mas a genitora de um anencéfalo sabe que sua roupa será, irremediavelmente, um pequeno caixão. O Estado, quando autoriza o médico a praticar o aborto em gravidez resultante de estupro, de acordo com o art. 128, inciso II, do Código Penal, explicita que o feto pode ser sacrificado para garantir os direitos constitucionais e, em especial, a honra da mãe. Daí, conclui-se que nem sempre a vida está acima dos princípios constitucionais do respeito à existência numa concepção holística e não meramente biológica. Por muito mais razão, manter um ser morto no ventre da mãe não encontra apoio no princípio bioético da beneficência, pois prolonga inutilmente o sofrimento materno, sem nenhum benefício à vida.”. [destacado].
Segundo o referenciado entendimento, o Supremo Tribunal Federal sedimentou nova hipótese legal de interrupção da gravidez, além daquelas expressamente previstas no código penal brasileiro. Perceba que a interpretação levada a efeito pela maior corte nacional consagra a liberdade sexual e reprodutiva, a saúde, a dignidade e a autodeterminação feminina como direitos fundamentais da mulher.
Ocorre, porém, que a mencionada conjectura legal de interrupção da gravidez está adstrita à hipótese da existência de diagnóstico de feto anencéfalo, cujos critérios científicos para a caracterização já gozam de consenso entre os médicos e os operadores do direito. Permanecem, assim, os obstáculos legais à interrupção da gravidez para todas as demais hipóteses de malformações fetais e outras condições restritivas que importem inviabilidade da vida extrauterina.
Nestes casos, para que não seja considerado crime, a gravidez somente poderá ser interrompida por profissional da medicina com a devida autorização judicial. É o caso, à guisa de exemplificação, do diagnóstico de algumas triploidias, condição genética anômala que implica severas malformações fetais e que pode inviabilizar por completo a vida extrauterina, sendo universalmente considerada letal.
Em circunstâncias tais, será necessária a intervenção do poder judiciário para que, sopesadas as provas do diagnóstico e a opinião de especialistas, seja expedido alvará de autorização para a interrupção legal da gravidez. A respeito, vejamos trecho de decisão proferida em situação específica2:
Assim, resta comprovado pelos exames e relatórios médicos (IDs. 83744992, 83747797 e 83747799) que o feto acometido da anomalia genética triploidia, e que, pelo tudo exposto acima, esta condição impossibilita a vida extrauterina em patamares extremamente semelhantes ao caso dos anencéfalos, subsumindo-se no ratio decidendi extraída da ADPF nº54, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, o que enseja a aplicação do entendimento de que a interrupção gestacional de feto que padece de anomalia ou deficiência incompatível com a vida extrauterina não constitui conduta típica, nos moldes do Código Penal brasileiro e, portanto, pode ser realizada pelos autores.
Assim, é imprescindível reconhecer que é possível promover a interrupção legal da gravidez, mas todo o procedimento – seja no caso já autorizado de anencefalia ou na hipótese de outras malformações que exigem autorização judicial – deve observar as restritas hipóteses legais para que não seja considerado crime, havendo necessidade de acompanhamento próximo de profissionais da medicina e do direito, que possam assegurar a saúde e o direito dos envolvidos.
BRUNO PENA DO CARMO
Advogado OAB/MG 108.887
Especialista Direito Ambiental – UFV
Bacharel Administração – UFV