Inicialmente, entende-se por abolitio criminis a transformação de um fato típico em atípico, em que determinada conduta antes tipificada como crime, perde a tipicidade em razão de nova lei que a torna fato não mais criminoso. Portanto, trata-se de fato jurídico extintivo de punibilidade.
Nesse sentido, o benefício trazido por uma nova lei que resolve não mais incriminar certa conduta, por motivo de mutações sociais e respeitando o princípio da intervenção mínima do Direito Penal, deve ser aplicada tanto aos novos casos posteriores à criação da lei, quanto até aos casos com sentença penal condenatória transitada em julgado.
Em razão disso, nos casos de eventual condenação anterior à lei, cessarão a execução e os efeitos penais da sentença condenatória, bem como todos os efeitos penais da conduta antes reputada como criminosa, nos termos do art. 2º do Código Penal. Vale ressaltar, ainda, que o referido artigo menciona apenas os efeitos penais, não excluindo os de natureza administrativa e civil.
Na tentativa de aproximar o Código Penal Brasileiro da realidade, visa-se trazer à tona que as transformações culturais no decurso do tempo conduzem a mudanças em relação às condutas que a sociedade considera merecedoras de punição.
Sendo assim, a legislação penal prevê expressamente a hipótese determinada conduta deixar de ser enquadrada como crime, em razão da edição de uma norma revogadora posterior. Segundo o caput do artigo 2º do Código Penal, ninguém pode ser punido por fato que lei deixa de enquadrar como crime depois.
Dentre os exemplos mais popularmente conhecidos de delitos compreendidos pela chamada abolitio criminis no Brasil estão o adultério e a sedução de mulher virgem entre 14 e 18 anos de idade, duas condutas que eram consideradas crimes e que foram revogadas pela Lei 11.106/2005. No decorrer dos anos, o Superior Tribunal de Justiça vem sendo provocado, em diversas ocasiões, a se manifestar acerca da aplicação do instituto da abolitio criminis.
Pretende-se, portanto, evidenciar algumas das principais mudanças ocorridas no ordenamento jurídico pátrio e analisar os principais entendimentos que vêm sendo adotados nos tribunais, a fim de tornar mais compreensível tal instituto.
Primeiramente, trata-se dos crimes contra a honra por meio da imprensa, em que já é unânime no STJ a compreensão de que a não recepção da Lei de Imprensa (Lei 5.250/1967) pela Constituição Federal acabou por não implicar abolitio criminis dos delitos contra a honra cometidos por meio da imprensa.
Fora alegado que tal entendimento incidiria em constrangimento ilegal, em razão da não observância do princípio da ultratividade da regra penal mais benéfica, no caso da ocorrência dos fatos se darem na época da vigência da Lei de Imprensa.
Entretanto, ao declarar a não recepção constitucional da Lei 5.250/1967, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130, o Supremo Tribunal Federal determinou que os fatos enquadrados na Lei de Imprensa fossem remetidos à tipificação constante na legislação penal comum, independentemente de quando se deu a prática criminosa, ignorando-se referida lei.
Já com relação aos crimes da legislação de drogas, o STJ é constantemente questionado acerca da abolitio criminis. Com relação à posse de entorpecentes para consumo pessoal, existe jurisprudência no sentido de que o artigo 28 da Lei de Drogas não levou à descriminalização, mas apenas à despenalização da conduta, inexistindo, portanto, a abolitio criminis.
Referida corte denegou, por unanimidade, o habeas corpus (HC 412.614) impetrado pela Defensoria Pública paulista em favor de um condenado por roubo qualificado, cujo benefício renovado de livramento condicional havia sido revogado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), em razão do cometimento do crime de posse de drogas para uso próprio no curso do primeiro período de livramento.
Reforça-se que é amplamente escorado na jurisprudência, inclusive do STF, o entendimento de que a Lei 11.343/2006 não implicou abolitio criminis da conduta de possuir droga para consumo próprio, ou seja, a conduta foi apenas despenalizada pela nova Lei de Drogas, mas não descriminalizada. Ou seja, a posse de drogas para uso pessoal ainda é considerada como crime.
Em se tratando do crime de embriaguez ao volante, a jurisprudência é no sentido de que há a incidência do instituto da abolitio criminis no crime de dirigir em estado de embriaguez com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas, nos termos da redação dada ao artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro pela Lei Seca.
Com isso, percebe-se que a redação atual desse artigo do CTB, conferida pela Lei 12.760/2012, exige, para a configuração do crime, não apenas a constatação do teor alcoólico, mas também a comprovação da alteração da capacidade psicomotora do condutor.
Na visão do STJ, a Lei 12.760/2012 não criou hipótese de abolitio criminis em relação a fatos denunciados anteriormente à sua vigência, sendo que a norma corrente permite o emprego de outros meios de verificação do estado de embriaguez de forma alternativa, e não cumulativa com o exame de alcoolemia.
Por outro lado, no tocante ao crime de desmatamento de área de preservação permanente, os precedentes do STJ responsáveis por firmar a compreensão de que não há que se falar e, abolitio criminis, a partir da sanção do atual Código Florestal, quanto ao delito inscrito no artigo 38, caput, da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998), que dispõe: “Destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente, mesmo que em formação, ou utilizá-la com infringência das normas de proteção”.
Em um dos julgamentos a respeito da matéria, ficou mantido por unanimidade decisão que negou provimento ao Recurso Especial 1.408.507, interposto pela Defensoria Pública da União em favor de um agricultor que praticava atividade agrossilvipastoril em Área de Preservação Permanente e teve a sentença absolutória anulada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Argumenta-se que o caput do artigo 61-A do Código Floresta de 2012 autoriza a continuidade de práticas agrossilvipastoris em APP. Ao rejeitar a aplicação da abolitio criminis, ressaltou-se que uma lei penal incriminadora só pode ser revogada de maneira expressa a partir da edição de outra lei.
Destaca-se, ademais, que o artigo 61-A da Lei 12.651/2012, esse que exige o cumprimento de uma série de condicionantes ligadas à recomposição ambiental de imóveis rurais em área de preservação permanente para a extinção da punibilidade e a regularização das atividades agrossilvipastoris consolidadas até 22 de julho de 2008.
Por fim, tem-se a abolitio criminis parcial do artigo 89 da lei 8.666/93. Com relação à prática dos delitos anteriormente tipificados neste, com relação ao disposto sobre deixar de observar as formalidades de dispensa em processo licitatório.
Entretanto, em abril de 2021, foi promulgada a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, a Lei nº 14.133/21, que revogou expressamente os artigos 89 a 108 da Lei 8.666/93. Infere-se da nova legislação que a maior parte das condutas anteriormente criminalizadas se mantiveram inalteradas e foram transportadas para o Código Penal, por força do princípio da continuidade normativo-típica.
Nada obstante, há uma exceção específica e que se aplica ao caso dos autos, uma vez que a segunda parte do caput do revogado artigo 89 da Lei nº. 8.666/93, que previa como crime “deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”, fora suprimida, não mais sendo tipificada como conduta criminosa.
Com efeito, a conduta prevista anteriormente passou, na vigência da nova lei, a ser prevista no artigo 337-E, do Código Penal, sem o comando citado. Portanto, não mais existem no novo tipo penal as condutas denominadas de “dispensar ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”, o que torna as ações penalmente irrelevantes.
Posteriormente, contudo, durante a tramitação do PL 6814/2017 que deu origem à Lei 14.133/21, o legislador optou por suprimir a conduta omissiva própria de “deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”.
E a razão para tanto se assenta justamente no entendimento consolidado de que discrepâncias formais no procedimento de contratação não comprometem o interesse público nem adquirem relevância penal, sendo mera irregularidade administrativa.
Observa-se que o crime anteriormente imputado não é mais considerado crime, em razão de nova lei que revogou o disposto na antiga Lei de Licitações, devendo lhe ser aplicada, portanto, a lei penal mais favorável, segundo o disposto no artigo 2º do Código Penal.
Após o estudo da abolitio criminis, e de suas consequências no Direito Penal brasileiro, nota-se que se trata de instituto que visa a adequação do Código Penal, datado de 1940, elaborado há mais de 80 anos, às realidades sociais e constantes mutações ocorridas no Brasil.
Torna-se, portanto, irrelevante dizer que da mesma forma que surgem novos tipos de crimes, é necessário referido instituto, a fim de que se descriminalize condutas ou atos não mais são lesivas à sociedade como um todo e em prol da evolução das relações sociais.
CAROLINA AZEVEDO ANDRADE
Estagiária de Direito
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Geral – 5 ed. – Salvador: jusPODIVM, 2017.
Capez, Fernando. Direito Penal Simplificado: Parte Geral – 15. ed. — São Paulo: Saraiva, 2012.
Masson, Cleber Rogerio. Direito penal esquematizado: Parte geral – vol. 1 – 4. ed. – São Paulo: METODO, 2011.
Fundamentos dogmáticos de funcionalismo penal constitucional/ Miguel Polaino-Orts. – 1ª ed. – Managua: PAVSA, 2017, pág. 134 e ss.
Tratado de direito penal: parte geral 1, 14ª edição, São Paulo, Saraiva Educação, ano 2018, pág. 955.
COMENTÁRIO CONTEXTUAL À CONSTITUIÇÃO, editora malheiros, 5ª edição, ano 2008, pág. 138.